Muito provavelmente uma maldição paira sobre o antigo Mercado Central de Porto Velho, hoje Mercado Cultural. O prédio, outrora imponente arquitetura eclética e com claras inspirações neoclássicas, ao longo das décadas foi sendo marcado, paulatinamente, por valores sentimentais, históricos e estéticos.
A história da edificação do primeiro Mercado Municipal da cidade começa com o Major Fernando Guapindaia de Souza Brejense, primeiro Superintendente de Porto Velho, que determinou a construção do necessário mercado, sendo a obra inaugurada e em 28 de julho de 1915.
O Doutor Joaquim Augusto Tanajura, sucessor do Major Guapindaia, foi o primeiro algoz do Mercado Municipal da cidade. Em 1º de janeiro de 1917 decretou a demolição do prédio, alegando a necessidade de se construir outra edificação de maior porte, com condições de melhor atender as necessidades da população e dos feirantes. Com este ato, têm início os atentados carniceiros e acontecimentos opróbrios contra o patrimônio público de Porto Velho. Tanajura, que pretendia deixar uma grande marca arquitetônica, jamais conseguiu erguer o novo projeto do Mercado Municipal.
Na administração do Superintendente Francisco Pinto Coelho, já na década de 20, os trabalhos para construção do mercado foram retomados, contudo, pouca coisa se fez, e, no decorrer de várias administrações da cidade, muitos prefeitos contribuíram para erguer a obra arquitetônica que um dia abrigaria o Mercado Municipal.
Em junho de 1948 o Prefeito Ruy Brasil Cantanhede deu novo início às obras de construção do Mercado Municipal. Em 12 de junho de 1950 Cantanhedei inaugurou o mercado, numa versão arquitetônica eclético-neoclássica que perdurou até a década de 80.
Ao longo de sua história, a edificação sempre foi cercada por acontecimentos sinistros. Na década de sessenta, por exemplo, um grande incêndio consumiu metade do prédio, deixando a cidade, feirantes, populares e freqüentadores assíduos do antigo mercado em pavorosos. Sobre o bizarro incidente recaiu a suspeita de um crime proposital, articulado por uma poderosa família que, naquela época, tinha interesses e projetos imobiliários para o terreno.
Após o estranho e ‘imprevisto’ incêndio, permaneceu de pé apenas metade da edificação. Na outra metade do terreno foi erguido o Edifício Rio Madeira, uma iniciativa do - hoje falido - Grupo Tourinho.
E assim, o antigo mercado se manteve funcionando, parcialmente, por anos, como um símbolo à covardia, com apenas metade da sua edificação. Um verdadeiro fantasma do passado, jazendo teimoso.
Porém, numa certa sexta-feira Santa da década de oitenta – é isto mesmo que você leu: sexta-feira Santa -, ao cair da noite, sorrateiramente a maldição ressurgiu das trevas e avançou sobre nosso patrimônio cultural. Espectros, pilotando o espírito do mal metamorfoseado em forma de tratores, massacraram o que restou do antigo Mercado Central, pondo a baixo, definitivamente, quase toda edificação restante. Sobreviveram, erguidos, apenas três bazares onde insistiam em funcionar, entrincheirados, como bravos índios guerreiros, uma pastelaria (pela Rua Presidente Dutra), uma floricultura e o famoso e histórico Bar do Zizi (com frentes voltadas à Praça e Palácio Getúlio Vargas). Mais uma vez reincidiu sobre os mesmos suspeitos a acusação do ataque covarde, criminoso e ignomínico que botou a baixo as reminiscências arquitetônicas do antigo Mercado Central.
Diante daquela tragédia ardilosa e ceifadora da memória da cidade, a população se mobilizou. O segmento cultural, professores, historiadores, escritores, advogados e pioneiros protestaram. O caso foi parar nos tribunais. Durante mais de duas décadas a contenda se arrastou pelos corredores da justiça local.
Finalmente, uma luz parecia iluminar o final do túnel funesto através do qual se enveredou a valiosa edificação histórica que um dia abrigou o nosso Mercado Central. No ano de 2006, a atual administração municipal acenou com um projeto de reconstrução, restauração e revitalização do antigo edifício, intitulando a proposta de Mercado Cultural, ressignificando, assim, suas funções, doravante adequadas para apresentações de espetáculos produzidos por artistas caboclos e beraderios e suas produções culturais, artistas convidados, visitantes e turistas. Vislumbrava-se então, esperançosamente, o restabelecimento de um templo sagrado para população local, onde habitaria, perpetuamente, a estética, a produção cultural e a memória beradeira.
Ledo engano. O projeto proposto pela municipalidade começou, mais uma vez, enviesado, ou, melhor dizendo, pelo fim de tudo: tratores, maquinas pesadas e caçambas demoliram, por completo, o derradeiro símbolo de resistência da nossa luta, da nossa memória e do nosso passado recente. Caia, por fim, nossa última insígnia de resistência. Nada restou. Só escombros e pó do passado, das históricas lutas dos descendentes de karipunas e karitianas, de beraderios, de caboclos, dos nordestinos das primeiras levas dos trabalhadores barbadianos, indianos, americanos, ingleses e de tantas outras nacionalidades que aqui se instalaram para erguer a fabulosa Madeira-Mamoré.
Sobre o terreno vazio - teatro de guerra estética onde se enfrentaram, ferozmente, de um lado o discurso da preservação e da memória defendido pelos colonizados e, na outra margem oposta, posicionados firmemente, colonizadores, ostentando a fala do novo, do moderno - restou para Prefeitura de Porto Velho erguer uma polêmica cópia, uma réplica, uma imitação, um borrão do antigo Mercado Central, para arrefecer os ânimos exaltados.
O clone, inspirado na arquitetura histórica que um dia existiu, passou a suprir uma lacuna e, aos poucos, foi tomando lugar no espaço cultural da cidade. O atual Mercado Cultural vem figurando como o principal palco da cultura portovelhense. Tomou tamanha importância e envergadura que tem sido usado por míopes e ambiciosas autoridades, como valioso instrumento de disputa interna para conquista de mais poder e espaço político na administração municipal.
A peleja política sanguinolenta não tem poupado quase nada e atropela tudo que estiver pela frente. A contenda insana já elegeu as vítimas da vez: o produto cultural da urbe tupiniquim, os artistas e seus instrumentos de fazer arte e a indefesa programação artística do Mercado Cultural. Confiscar freezes, mesas, cadeiras, instrumentos musicais, banir o público, inviabilizar palco, recolher as luzes da ribalta são táticas eficazes e impiedosas utilizadas pelos oponentes, que atingem, certeira e exclusivamente, o artista e seu público.
Para os artistas e o grande público restaram apenas uma única saída: aguardarem, recolhidos em lugar seguro, torcendo para que os verdadeiros inimigos da cultura - com suas loucas disputas por migalhas do poder –, num final imprevisto, sucumbam abraçados.
Enquanto esta dádiva não for materializada, vamos invocar velhos espíritos indígenas, pajés do além, intimar as entidades encantadas dos terreiros da sincrética cidade de Porto Velho, em especial, o de Santa Bárbara, nossas benzedeiras, para juntos realizarmos um fortíssimo ritual purificador, inclusive lavando a calçada e o palco do nosso templo sagrado de manifestações culturais com o chá do cipó de mariri, e assim, de uma vez por todas, expurgar esta maldição de olhar agourento que teima cercar o Mercado Cultural, nossos artistas e o nosso patrimônio artístico-cultural. Macumba forte nos perseguidores da cultua, em nome de Deus, de Alá, de Oxalá e de Tupã!
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*Autor: Ariel Argobe é Artista Plástico e Presidente da Federação das Escolas de Samba
e Entidades Carnavalesca de Rondônia – FESEC.
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