sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Parênteses - Crítica Teatral "O Cabra que matou as cabras"*


O genuíno teatro de rua em grande estilo. Isso é o que se pode dizer do espetáculo O Cabra que matou as cabras, uma adaptação de Hélio Fróes do texto medieval A Farsa do Advogado Pathelin. Uma montagem da Cia de Teatro Nu Escuro de Goiânia, que reuniu todos os recursos próprios e característicos da linguagem do teatro de rua, do realismo grotesco, de modo eficiente e na justa medida. Um elenco bem preparado com domínio técnico de voz, corpo e uma forte empatia com o público, que se manteve atento e participativo durante toda a apresentação, deleitando-se com as verdades nuas e cruas que saíam poeticamente da boca dos personagens, tão populares quanto os que foram surpreendidos passando pela Praça Jônatas Pedrosa, às quatro da tarde de uma quarta feira.

Cenários e figurinos que remetem ao período retratado, com as próteses de seios, pênis, testículos, barriga, ombros, nádegas, roupas com aspecto surrado como se fossem as companhias itinerantes de comediantes que viajavam de carroça por toda a Europa apresentando seus espetáculos. Em cena, um corpo dessacralizado, incompleto, deformado, em transformação, muito distante do belo padrão apolíneo.

Na encenação encontramos as referências claras ao autor russo Mikahil Bakhtin, em sua obra A Cultural Popular no final da Idade Média e no Renascimento: o grotesco com suas metamorfoses entre o humano, o animalesco e o vegetal, em cena os personagens surgem meio cabras, meio humanos; o sentido do rebaixamento que remete ao plano da terra, das necessidades básicas do sexo, da fome, da materialidade primeva, em cena os personagens buscam saciar unicamente sua fome de sexo, dinheiro e comida; a sonorização do espetáculo também é um ponto forte que remete à carnavalização, a festa utópica e popular, onde o antigo e o novo se encontram, onde as coisas estão ao avesso, onde se reverte o poder, a autoridade é desconstituída para que renasça um novo homem, um novo poder e uma nova autoridade.

Em cena, advogados, juiz, comerciante, representações do poder hierarquizado e constituído são satirizados numa anarquia provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus, onde o tapete do poder é subitamente levantado e sob ele se revelam todas as sujeiras. O riso anárquico através do qual todos os males são expurgados para que o homem novo renasça, são e justo. O carnaval é originalmente a festa da renovação que tinha lugar quando um rei era deposto e outro se colocava em seu lugar e a população anunciava a morte de um e o surgimento de outro, assim também com esperanças renovadas saímos do espetáculo de rua genuinamente popular e democrático com vontade de gritar: O Rei está Morto! Viva o Rei!

___________________________
*O texto é de autoria de Jória Lima, atriz, diretora, dramaturga, crítica teatral e especialista em Arte Contemporânea.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Contribua com o seu verso aqui: