segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Parênteses - A Bela e a Fera*




Nem tudo é tão normal assim.


Há momentos em que a existência perde totalmente o eixo de sua consciência crítica, e ficamos sem saber até que ponto a vida imita a arte ou até que ponto a arte é que imita a vida.

Estou assistindo ao Fantástico, quando de repente o repórter passa a narrar as façanhas de uma toureira espanhola. A Bela é uma jovem mulher de 23 anos, bonita, esbelta e segura de si mesma. A Fera é um touro cheio de energia, dono de uns chifres pontiagudos e mortíferos.

Ambos adentram a arena e são recebidos com entusiasmo pela galera. Existe entre eles um pacto, o pacto da morte. E o público, sedento de sangue e emoção, está ali justamente para ser saciado e presenciar o desfecho desse ritual de morte milenarmente cultivado em terras flamencas.

Um dos dois terá trágico fim. A Bela, se não souber, com maestria, conduzir aquela massa furiosa de meia tonelada de sangue e músculos, ou a Fera, se se deixar levar pelos gestos hipnóticos da linda toureira, sucumbindo, já exausto, ao golpe de misericórdia que poderá lhe ser desferido ao final do espetáculo.

O juiz autoriza a peleja e é dado início ao embate entre a mulher e o animal. Garcia sabe que, além do touro, está digladiando também com o secular machismo espanhol, e é preciso vencer a ambos para se honrar diante da Fera e dignificar-se diante das fêmeas que assistem a ela.

A morte se acomoda no centro do picadeiro e inicia seu balé letal. Ela é a sacerdotisa do culto dos mortos e está ali para dar as bênçãos e boas-vindas aos que comungam seu credo.

O touro parte cheio de ódio rumo à toureira que lhe atiça os nervos com uma mortalha vermelha irritante, mas só encontra o vácuo. Os movimentos da fêmea são graciosos, porém marcados pela cadência precisa de quem conhece a fundo a arte de submeter touro brabo aos caprichos de seu querer. Aos poucos a Fera vai perdendo toda a energia, sendo saudada a toureira com gritos de OLÉ!! Pela massa humana em delírio. Passado um tempo, sua respiração já é resfolegante, de suas narinas parece sair fogo e o brilho de seus olhos reflete o pedido de clemência de quem vai morrer a troco de nada. Galopando pra lá e pra cá, a Ferra vai sendo preparada para a cena final do auto de imolação.

Por trás da performance angelical da mulher esconde-se, à sombra de seu coração contraditório, a figura da exímia matadora. Ironicamente, à medida que o touro vai se desvanecendo, o ritual de vida e morte começa a subverter seus papéis.

Quem, no início da luta, aparentava doçura e fragilidade, agora esnoba garra e poder. Quem deixava transparecer altivez e imperturbável força sem doma, agora se mostra derrotado, vencido pelo cansaço e pelo galope escabroso, prenúncio de uma execução que se aproxima a passos largos.

Por fim, a hora é chegada. O animal, cambaleante, mal consegue se manter em pé. Garcia dá-lhe as costas e acena para o público, numa demonstração de coragem. Em seguida, volta-se para sua vítima e procura-lhe os olhos. É a senha. O animal combalido avança lento em sua última investida e é abordado certeiramente pela lâmina que se instala traiçoeira em seu corpo, que cai de joelhos numa súplica que já não tem mais sentido de ser. Antes que o coração esboçasse o aval do perdão, a mão cega executou a pena de morte naquela ensolarada tarde de sábado, numa Espanha que se quer mais civilizada e menos primitiva, que quer esquecer o generalíssimo Franco e eternizar Pablo Picasso.

Desligo a TV e vou para o quintal olhar a lua cheia que reinando nos céus me intriga o pensamento...

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* Por Antônio Serpa do Amaral Filho (Basinho)

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